A razão e a
ciência tentam explicar o mundo. Para todas as outras coisas inexplicáveis
existe o Botafogo.
“Enquanto
todos os outros torcedores vão ao jogo de futebol para escapar da vida, nós,
botafoguenses, vamos ao estádio para entendê-la melhor”. Explica João Moreira
Salles, um dos selecionados no escrete de finíssima arquibancada gloriosa que
escala Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Luis Fernando Verissimo, Otto
Lara Resende, Ivan Lessa, Armando Nogueira, João Saldanha, Paulo Mendes Campos,
Glauber Rocha, Fernando Sabino, Olavo Bilac, Antonio Candido, Sandro Moreyra,
Emir Sader. Tantos alvinegros de berço e de General Severiano.
São cem
anos do estádio do clube que mais atletas cedeu à maior seleção do futebol
mundial. São 60 anos de um treino em que o craque-bandeira Nilton Santos levou
um baile de um anjo diabólico que driblava certo com pernas tortas. Quando Mané
Garrincha ganhou um lugar no clube e na história do futebol. Gênio e Alegria do
Povo. Craque tipicamente botafoguense. Pode existir outro atleta neste mundo
como o E.T. Pelé. Mas um novo Mané, daquele jeito, naquelas pernas, isso não
existe. Isso é Botafogo. Aquilo foi em General Severiano, em 1953. Onde todos
os grandes craques e ídolos do clube atuaram até o último jogo, em 1974. Onde
Heleno foi ele no melhor jeito e nos melhores jogos.
Garrincha não
se explica pela ciência e pela bola. Botafogo não quer e não pede explicação.
Como diz o botafólogo Lúcio Rangel: “Eu não gosto de futebol. Gosto
do Botafogo”. É isso. Não precisa ter título – e tem muitos. Não precisa ter
craque – e teve tantos. Não precisa ter um estádio – teve vários. Não precisa
ter mais torcida, mais dinheiro, mais poder, mais vitórias, mais, muitos. Só
precisa Mané. Só precisa de um canto para ser Botafogo. Não precisa nem mesmo
ter uma casa. Pode alugar. Pode arrendar. Pode demolir. Pode tudo. Pode até
ficar errando de campo em cancha.
Mas é
preciso Botafogo. Por mais impreciso que seja.
É preciso
contar General Severiano. Lar do Glorioso. Da Estrela Solitária até quando o
clube e os cofres se perderam num buraco negro.
Botafogo da
primeira cancha na Humaitá até o ground da Voluntários da Pátria –
que foi vendido e virou rua General Dionísio (sempre existem patentes
estreladas na história única do Botafogo). Quando o clube ficou com apenas 12
sócios em 1912, Marechal Hermes da Fonseca (mais um estrelado, e que não se
perca pelo nome…) deu ao Botafogo a concessão do terreno na rua General
Severiano por sete anos – outro sete cabalístico do clube de Mané, de Maurício
e de Túlio Maravilha.
Os
abnegados botafoguenses (uma redundância) construíram o campo que só podia
inaugurar no ano 13. 1913. No Dia 13. Treze de maio. 13 de maio de 13. Saravá,
Zagallo – e não preciso contar quantas letras tem a frase anterior.
Só podia
ser em Botafogo. No Botafogo. Não tinha mais match na pedreira da Assunção,
ou na charneca da rua São Clemente. O que era um casarão em ruínas no bairro
virou um campo para treinar. Para jogar. Para ser Botafogo. Para colocar luz no
estádio em 1930. Para fazer drenagem pioneira no país. Para fazer campanha por
cimento e ampliar as arquibancadas para 25 mil pessoas, reinaugurando a praça
de futebol em 1938, com vitória sobre o Fluminense. Dez anos antes do último
título conquistado no lindo estádio de espírito. O Estadual de 1948. Com
vitória sobre o Vasco.
As grandes
datas de General Severiano sempre têm um rival vencido. Como no primeiro
clássico. Em 1913. Um a zero no Flamengo. Gol de Mimi Sodré. Sem mimimi. Só
mais um fino craque de bola e sem cartola. Não por acaso, outra expressão
nascida em General Severiano: “cartola” para definir um dirigente de clube.
Por mais
inefável que tenha sido um diligente como o dirigente Carlito. Não houve
cartola no clube e no Brasil como Carlito Rocha. Ele amarrava e dava nós nas
cortinas do palácio Wenceslau Brás para travar e marcar os rivais… Ele,
Carlito, que adotou Biriba. Cão preto e branco que virou craque campeão
estadual em 1948. Só por que em um jogo de aspirantes contra o Madureira o
cachorro invadiu o gramado durante e partida. Virou mascote. Virou símbolo.
Virou Botafogo.
General
Severiano onde Carlito Rocha viu “sangue, suor e lágrimas dos botafoguenses”.
Onde só se viu quase tudo isso – menos botafoguenses – na venda da área de
General Severiano para a Companhia Vale do Rio Doce, em 1977. Quando o clube
virou suburbano em mais uma patente estrelada – Marechal Hermes. Depois
atravessaria a ponte para jogar em Niterói, em Caio Martins. Este século faria
festa e jogos no Engenhão.
Mas quando
ficou distante de Botafogo, a partir de 1977, o clube se perdeu por muito
tempo. Nada mais ganhou até 1989. Em 1995, quando voltou a ser o maior do
Brasil, foi no mês em que o clube voltou definitivamente a General Severiano.
No estádio onde se vê o Corcovado e o Pão de Açúcar. Onde Carlito, nas tardes
cinzas como as meias gloriosas, pedia ao roupeiro Aloísio para que soprasse as
nuvens que cobriam o Cristo Redentor para que ele pudesse enxergar o Glorioso…
Coisa de Carlito. Caso de Botafogo. Na casa alvinegra por excelência. Por uso
campeão.
O Maracanã
foi tirando o Botafogo de General Severiano a partir de 1950. Mas jamais o
Botafogo tirou General Severiano da alma. É mítico. É um mistério. É de quem
tem estrela. “O Botafogo é mais que um clube. É uma predestinação celestial”,
defendia Armando Nogueira. Um que veio do Acre para ver naquele pedaço de terra
do Rio muito do que é o futebol. Não apenas pela qualidade. Mas por aquilo que
não se quantifica. Poucas coisas são tão “futebol” quanto o Botafogo. Essa
perfeita imperfeição inventada pelo homem tem no clube carioca umas das mais
precisas traduções e preciosas tradições.
Paulo
Mendes Campos, sumidade botafoguense (outra redundância), disse que o “o
Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol.” Com
tantas casas e mudanças, o clube até pode ter se perdido. Mas raros são os
casos no futebol de clubes que voltam para casa. Raríssimos têm um lar com
tanta história como aquela rua de Botafogo.
Aquele
menino da rua General Severiano, de fato, ganhou no drama do esporte uma
história centenária de vida. “Quando o Botafogo está em campo há sempre mais
coisas entre uma trave e outra além de 23 sujeitos e uma bola”, afirma João
Moreira Salles.
Quando o
Botafogo está em General Severiano, não precisa nenhum atleta, nem árbitro, nem
bola. Basta uma estrela.
A
estrela. Centenária.
Mauro Beting, jornalista esportivo há 22 anos. Não viu jogo em General Severiano em 46 anos de vida. Mas não precisa ter visto para saber que o do Botafogo é o campo dos sonhos. Como o do delírio do primeiro prélio, o da foto, em maio de 1913.
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