Queridíssimo
e admirado por todos que tiveram oportunidade de conhecê-lo em vida, o esperto
psitacídeo pousava alegremente em qualquer objeto assemelhado a galho que lhe fosse
apresentado.
Não
chegou a aprender a falar – até porque não viveu o suficiente para tal – porém
assoviava e dançava como nenhum outro, era uma verdadeira maquete viva em
escala reduzida do mais nobre, hábil e famoso dos seus familiares emplumados de
bico eunuco, os papagaios reais.
Permanente
alegre, curtia animadamente esse mundão livre, leve e solto, fazendo festa o
tempo todo do alto de um ajeitado poleirinho que tinha estampado na parede de
fundos um vistoso escudo da Tuna e como piso uma bandeja retrátil, sempre higienicamente
protegida por forrações descartáveis.
Já
naquela época, habitava o que seria consagrado posteriormente como “mobile
home”, só que numa versão embrionária, tipo uma mini cobertura panorâmica,
prudentemente fixada em ganchos previamente chumbados sobre as empenas e umbrais
dos lugares que a família costumava frequentar.
Numas
férias de julho, chegou a reunir significativa plateia na fila da balsa do
Mosqueiro, quando, utilizando com poleiro-palco uma daquelas hastes horizontais
dos maleiros de teto dos carros utilitários, saiu dançando O Milionário,
sucesso musical dos Incríveis, que vazava da hermética e esfumaçada cabine do
Maverick de propriedade da mãe de um roqueiro amigo nosso, maldosamente
apelidado de Árvore de Natal.
Só
muito depois sacamos que aquela alegria toda, na realidade, era um prenúncio de
despedida.
Naquela
noite, contrariando seus costumes e instintos naturais, nosso herói resolveu
descer do seu “mobile home” para dar um “rollé” pelo enluarado quintal da nossa
casa do Mosqueiro e acabou servindo de banquete para um velho e mal encarado gato
de rua que, desgraçadamente, após refastelar-se, caiu na asneira de adormecer junto
àquela massa rubra e inerte, com a cabeça e a plumagem que sobrou da avezinha.
Quem
primeiro deparou-se com aquela aterrorizante cena, lá pelas cinco e meia da
manhã, foi a caseira, também apaixonada pela vítima, que, mesmo de posse de um enorme
terçado teve discernimento suficiente para nos acordar antes de cometer sua
própria justiça, sussurrando-nos a notícia num tom cheio de emoção.
Assustados
com aquele deprimente toque de alvorada, acordamos tomados por uma angustiante sensação
de tristeza e revolta com sede de vingança e, ainda no quarto, nem esperamos
pelo Ariba e pelo Roberto da D. Cotinha, decidimos por aclamação, ali mesmo,
que a vingança seria maligna e imediata.
Como
a caseira nos negou o terçado, pegamos uma caixa de fósforos e uma garrafa de cachaça
– que além de outras finalidades servia para aliviar a coceira de nossas frieiras,
perebas e curubas – e vazamos para a cena do crime, que a partir daquele
momento transformava-se no cenário das nossas operações bélicas.
No
quintal, demos de cara com o asqueroso assassino, um cruel, guloso e insensível
gato malhado cinza escuro que, estarrado no balanço preso a um frondoso pé de
sapoti, embuchado e sonolento, nem sentiu aquele espetacular jato etílico, lançado
com precisão cirúrgica naquela nojenta e comprida cauda peluda.
Como
num comando de artilharia altamente treinado, a operação de ignição, com um
único palito incandescente atirado de longe no alvo já encharcado de combustível
limpo, foi tão imediata quanto precisa, interrompendo bruscamente o ócio daquele
cínico e infausto felino que, com a cauda flamejante e emitindo sons estridentes
que denunciavam susto e pavor, disparou como um míssil teleguiado na direção das
águas cor de âmbar da praia do Bispo, onde mergulhou sem espumar e desapareceu misteriosamente.
Segundo
testemunhas que o viram emergir horas depois, já na praia do Areão, o fato das
chamas terem atingido, além da cauda, também os bagos e pelos anais, valeu-lhe
uma indigna e profunda depressão alcoolista que o faz a definhar pelas sarjetas
imundas do mercado da Vila, miando desafinadamente trechos de sucessos da nova
música popular paraense para entreter a papudinha clientela do Mário Maracujá em
troca de migalhas alcoólicas, isso nas tréguas da perseguição recorrente e
implacável do molecório aos gritos:
– Olha o gato desculhonado
do cu pelado, tasca-lhe!!!
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