Essa história se passou com o Guga de Oliveira, irmão do Boni. O texto é do próprio Guga.
Em 1978, fui convidado pelo Mauro Salles para ser superintendente da Rede Tupi, o grupo de comunicação de Chateaubriand não estava bem das pernas... A Tupi tinha uma tradição muito forte em novelas, desde O direito de nascer. Tinha estúdios, bom elenco, bons diretores, bons iluminadores, bons técnicos, mas a administração era um desastre. Fui para lá em um momento de crise, quando o colegiado - ou os "comunheiros", como eram chamados por Assis Chateaubriand - lutava por migalhas. Mas, de qualquer forma, a televisão ainda unia alguns gananciosos, já que os jornais se tornaram independentes, as rádios independentes. O império de comunicação que Assis construiu jamais será revivido no Brasil. O complexo Globo Comunicação é um "genérico" perto do complexo que o Chateaubriand montou. Rede de jornais, rádios, televisão, revistas. Era um império de comunicação com mais de 150 empresas. Apesar da tradição na dramaturgia, que era muito boa, o setor musical era precário. O grande sucesso era o Benito di Paula, que o meu amigo Matraga chamava "Maldito de Paula". O jornal era uma bosta, sem credibilidade, pau mandado da ditadura. Programação visual, um lixo. Enfim, era preciso mexer em tudo.
A Bossa Nova estava completando vinte anos. Oficialmente, seu nascimento foi estabelecido em 1958, com o disco Chega de saudade do João Gilberto (hoje já faz mais de meio século). Era um aniversário, uma data redonda, como nós chamamos. E fazia mais de quinze anos que o João Gilberto, tido como criador da Bossa Nova, não vinha ao Brasil. Por meio de seus empresários, fiz uma proposta para ele fazer um espetáculo aqui no Teatro Municipal de São Paulo, pelo qual ele receberia o cachê em dólares e a Tupi ficaria com os direitos de transmissão pela televisão. O empresário me respondeu que por vinte mil dólares ele viria. Em 1978 era uma nota preta. Além disso, fez algumas exigências que não eram difíceis de atender. Eram esquisitas, mas não difíceis. A primeira era que ele queria ficar no Caesar Park Hotel. Isso não seria problema nenhum, pois até dava para tentar uma permuta. Queria as ligações internacionais que fizesse todas pagas pela Rede Tupi. Ele ama um telefone, mas também não foi considerado nenhum absurdo. Tinha de ter uma cozinheira baiana no hotel para ele comer moqueca, vatapá, xinxim, essas comidas típicas baianas que ele não via há tempos... E uma das exigências mais esquisitas de todas era uma mesa de pingue-pongue - isso mesmo, uma mesa de pingue-pongue - no aeroporto. Ele estava com saudades de jogar pingue-pongue com Caetano Veloso e exigiu o Caetano lá para recebê-lo para, imediatamente após o desembarque, jogarem uma partida de pingue-pongue. A produção achou aquilo um absurdo, houve uma certa reação, eu falei: - Isso é ótimo pra gente, porque vamos gravar essa partida dos dois e usar pra promover o espetáculo. Tudo acertado, veio o João Gilberto para cá. Claro que a tal mesa de pingue-pongue foi providenciada e trouxemos o Caetano Veloso da Bahia, que esperou o João descer do avião. Jogaram pingue-pongue e foi uma festa! A imprensa há muitos anos não via o João no Brasil. Ele era quase que adorado aqui e fora do País, como é até hoje: um nome polêmico, mas respeitadíssimo. Era disso que eu precisava. O espetáculo era no Teatro Municipal, em um sábado, às nove horas da noite, com transmissão direta, ao vivo para todo o Brasil. O João sempre teve e tem até hoje esse estigma de não cumpridor de horários, de criador de casos, de parar espetáculo no meio por causa do ar condicionado. É uma pessoa difícil de tratar, mas todas as suas exigências tinham sido cumpridas. Até cedi a minha secretária Eliana, que era baiana (excelente cozinheira, aprendeu com a mãe), para ficar no hotel fazendo as comidinhas que ele quisesse. Eliana me passava informações, era quase uma espiã, porque o João se trancou no quarto do hotel e não saiu durante os quatro, cinco dias antes do show. Ninguém o via. Às vezes, ele pedia uma pizza e pegava por baixo da porta, porque nem assim abria. E não colocava os pratos usados, com restos de comida, do lado de fora... Aquele quarto foi ficando um inferno. Um nojo. Bom, no dia do espetáculo, sábado à tarde, a ansiedade era grande. A cenografia batia prego no Teatro Municipal, pintava o cenário. Foram convidados o governador, o prefeito, o padre, todos os que representavam alguma coisa no Estado de São Paulo, além dos ricos e famosos, para assistir ao espetáculo de João Gilberto. Cinco horas da tarde, telefona minha secretária, a baiana:- Seu Guga, ele falou que não vai fazer o espetáculo hoje à noite.
Correu um frio na espinha... Só depois de alguns segundos, consegui perguntar: - Mas o que está acontecendo?
Ela contou: - Ele está com problema nos dentes, está com dor de dente...
- Dor de dente?! Que porra de dor de dente?!
Peguei o carro e fui voando para o Caesar, que ficava ali na Rua Augusta. Cheguei lá perto das seis horas. Bati forte duas ou três vezes. João abriu a porta:- Como vai, Guga? Tudo bem?
- Tudo bem..., mas o que está acontecendo, João?
- Eu tô com um probleminha, uma obturação aqui ó, caiu! Disse ele, mostrando o dente.
Eu falei:- São seis horas. Vou te levar num dentista, colocar uma massa, e pronto!
Ele quis saber: - Mas onde é que você vai encontrar um dentista de confiança num sábado a essa hora ?
Pensei "Meu Deus, que merda...". Então, falei:- Já sei! Meu cunhado!
João me olhou assustado...
O Cristiano, meu cunhado na época, tinha enchido o saco de cadeira e motorzinho e foi trabalhar comigo em produção. Mas até que era um dentista bem razoável... Algum tempo depois morreu de câncer, novo ainda. Ele chegou rápido e disse: - Eu ainda tenho meu consultório lá em Santo André, posso fazer essa obturação sem problema nenhum...
O João, ainda assustado, hesitou, mas concordou:- Tá bem, eu topo. Mas vou levar meu violão...
Não entendi o porquê, mas tudo bem! Lá fomos nós para Santo André amontoados em um carro com violão, João e o caralho. Graças a Deus era sábado e não tinha trânsito. Abrimos o consultório que estava praticamente abandonado. João entrou devagarzinho e, pálido, sentou na cadeira. Cris ligou o equipamento todinho, o João apontou onde estava o buraco da obturação e, como as radiografias feitas ali mesmo mostraram, não havia infecção nenhuma. Era apenas uma obturação que tinha caído. O Cris selou o dente novamente e passou ligeiramente o motorzinho para arredondar as arestas. Eu olhava apavorado para o relógio. Nesse instante, o João falou :- Me dá meu violão. Agora vou ver se funciona...
Imagine a cena: João Gilberto sentado em uma cadeira de dentista com o violão na mão cantando: "Se você disser que eu desafino, amor...". Então, ele disse:- Ó, ó... o "d" do "desafino" tá pegando... "Dz, dz"... Ouviu?
O Cristiano passou o motor mais um pouquinho. E João testava: "Ai, mas que saudades tenho da Bahia". - Ó... "da... da...", o "da", "da Bahia" tá pegando aqui em baixo...
E zzzzzzzz, motorzinho. O João ficou quase uma hora na cadeira do dentista tocando violão e meu cunhado, com o motorzinho, afinando os "da Bahia", "Rolley Flex" e outras coisas da Bossa Nova...Chegamos ao teatro quase oito e meia da noite. Fomos direto para o camarim. Na cadeira da maquiagem, João diz:- Fiquei muito tempo parado naquele consultório, sinto uma dor nas costas... Acho que não dá pra ficar no palco sentado num banquinho... Não dá pra fazer o show sábado que vem?
O teatro lotado, as câmeras ligadas, o Brasil todo conectado... Perdi a paciência e falei alto: - Você vai, nem que seja a porrete. São quinze pras nove. Pode se arrumar, colocar sua gravatinha borboleta, afinar seu violão, porque às nove horas você vai estar no palco.
- E se eu não entrar?
- Se você não entrar, eu jogo você no palco.
Então, às nove horas, debaixo de aplausos merecidos, nosso genial intérprete da música brasileira entrou e deu show. Com os dentes perfeitamente afinados.
A Bossa Nova estava completando vinte anos. Oficialmente, seu nascimento foi estabelecido em 1958, com o disco Chega de saudade do João Gilberto (hoje já faz mais de meio século). Era um aniversário, uma data redonda, como nós chamamos. E fazia mais de quinze anos que o João Gilberto, tido como criador da Bossa Nova, não vinha ao Brasil. Por meio de seus empresários, fiz uma proposta para ele fazer um espetáculo aqui no Teatro Municipal de São Paulo, pelo qual ele receberia o cachê em dólares e a Tupi ficaria com os direitos de transmissão pela televisão. O empresário me respondeu que por vinte mil dólares ele viria. Em 1978 era uma nota preta. Além disso, fez algumas exigências que não eram difíceis de atender. Eram esquisitas, mas não difíceis. A primeira era que ele queria ficar no Caesar Park Hotel. Isso não seria problema nenhum, pois até dava para tentar uma permuta. Queria as ligações internacionais que fizesse todas pagas pela Rede Tupi. Ele ama um telefone, mas também não foi considerado nenhum absurdo. Tinha de ter uma cozinheira baiana no hotel para ele comer moqueca, vatapá, xinxim, essas comidas típicas baianas que ele não via há tempos... E uma das exigências mais esquisitas de todas era uma mesa de pingue-pongue - isso mesmo, uma mesa de pingue-pongue - no aeroporto. Ele estava com saudades de jogar pingue-pongue com Caetano Veloso e exigiu o Caetano lá para recebê-lo para, imediatamente após o desembarque, jogarem uma partida de pingue-pongue. A produção achou aquilo um absurdo, houve uma certa reação, eu falei: - Isso é ótimo pra gente, porque vamos gravar essa partida dos dois e usar pra promover o espetáculo. Tudo acertado, veio o João Gilberto para cá. Claro que a tal mesa de pingue-pongue foi providenciada e trouxemos o Caetano Veloso da Bahia, que esperou o João descer do avião. Jogaram pingue-pongue e foi uma festa! A imprensa há muitos anos não via o João no Brasil. Ele era quase que adorado aqui e fora do País, como é até hoje: um nome polêmico, mas respeitadíssimo. Era disso que eu precisava. O espetáculo era no Teatro Municipal, em um sábado, às nove horas da noite, com transmissão direta, ao vivo para todo o Brasil. O João sempre teve e tem até hoje esse estigma de não cumpridor de horários, de criador de casos, de parar espetáculo no meio por causa do ar condicionado. É uma pessoa difícil de tratar, mas todas as suas exigências tinham sido cumpridas. Até cedi a minha secretária Eliana, que era baiana (excelente cozinheira, aprendeu com a mãe), para ficar no hotel fazendo as comidinhas que ele quisesse. Eliana me passava informações, era quase uma espiã, porque o João se trancou no quarto do hotel e não saiu durante os quatro, cinco dias antes do show. Ninguém o via. Às vezes, ele pedia uma pizza e pegava por baixo da porta, porque nem assim abria. E não colocava os pratos usados, com restos de comida, do lado de fora... Aquele quarto foi ficando um inferno. Um nojo. Bom, no dia do espetáculo, sábado à tarde, a ansiedade era grande. A cenografia batia prego no Teatro Municipal, pintava o cenário. Foram convidados o governador, o prefeito, o padre, todos os que representavam alguma coisa no Estado de São Paulo, além dos ricos e famosos, para assistir ao espetáculo de João Gilberto. Cinco horas da tarde, telefona minha secretária, a baiana:- Seu Guga, ele falou que não vai fazer o espetáculo hoje à noite.
Correu um frio na espinha... Só depois de alguns segundos, consegui perguntar: - Mas o que está acontecendo?
Ela contou: - Ele está com problema nos dentes, está com dor de dente...
- Dor de dente?! Que porra de dor de dente?!
Peguei o carro e fui voando para o Caesar, que ficava ali na Rua Augusta. Cheguei lá perto das seis horas. Bati forte duas ou três vezes. João abriu a porta:- Como vai, Guga? Tudo bem?
- Tudo bem..., mas o que está acontecendo, João?
- Eu tô com um probleminha, uma obturação aqui ó, caiu! Disse ele, mostrando o dente.
Eu falei:- São seis horas. Vou te levar num dentista, colocar uma massa, e pronto!
Ele quis saber: - Mas onde é que você vai encontrar um dentista de confiança num sábado a essa hora ?
Pensei "Meu Deus, que merda...". Então, falei:- Já sei! Meu cunhado!
João me olhou assustado...
O Cristiano, meu cunhado na época, tinha enchido o saco de cadeira e motorzinho e foi trabalhar comigo em produção. Mas até que era um dentista bem razoável... Algum tempo depois morreu de câncer, novo ainda. Ele chegou rápido e disse: - Eu ainda tenho meu consultório lá em Santo André, posso fazer essa obturação sem problema nenhum...
O João, ainda assustado, hesitou, mas concordou:- Tá bem, eu topo. Mas vou levar meu violão...
Não entendi o porquê, mas tudo bem! Lá fomos nós para Santo André amontoados em um carro com violão, João e o caralho. Graças a Deus era sábado e não tinha trânsito. Abrimos o consultório que estava praticamente abandonado. João entrou devagarzinho e, pálido, sentou na cadeira. Cris ligou o equipamento todinho, o João apontou onde estava o buraco da obturação e, como as radiografias feitas ali mesmo mostraram, não havia infecção nenhuma. Era apenas uma obturação que tinha caído. O Cris selou o dente novamente e passou ligeiramente o motorzinho para arredondar as arestas. Eu olhava apavorado para o relógio. Nesse instante, o João falou :- Me dá meu violão. Agora vou ver se funciona...
Imagine a cena: João Gilberto sentado em uma cadeira de dentista com o violão na mão cantando: "Se você disser que eu desafino, amor...". Então, ele disse:- Ó, ó... o "d" do "desafino" tá pegando... "Dz, dz"... Ouviu?
O Cristiano passou o motor mais um pouquinho. E João testava: "Ai, mas que saudades tenho da Bahia". - Ó... "da... da...", o "da", "da Bahia" tá pegando aqui em baixo...
E zzzzzzzz, motorzinho. O João ficou quase uma hora na cadeira do dentista tocando violão e meu cunhado, com o motorzinho, afinando os "da Bahia", "Rolley Flex" e outras coisas da Bossa Nova...Chegamos ao teatro quase oito e meia da noite. Fomos direto para o camarim. Na cadeira da maquiagem, João diz:- Fiquei muito tempo parado naquele consultório, sinto uma dor nas costas... Acho que não dá pra ficar no palco sentado num banquinho... Não dá pra fazer o show sábado que vem?
O teatro lotado, as câmeras ligadas, o Brasil todo conectado... Perdi a paciência e falei alto: - Você vai, nem que seja a porrete. São quinze pras nove. Pode se arrumar, colocar sua gravatinha borboleta, afinar seu violão, porque às nove horas você vai estar no palco.
- E se eu não entrar?
- Se você não entrar, eu jogo você no palco.
Então, às nove horas, debaixo de aplausos merecidos, nosso genial intérprete da música brasileira entrou e deu show. Com os dentes perfeitamente afinados.
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